Part-ida

Ele partiu. Não como quem sai à procura de um lugar melhor, de um destino certo, de um futuro, enfim. Simplesmente partiu. Por quê? Não sei se ele realmente sabia. Não quando partiu.

Partiu porque não havia mais lugar pra ele. Porque, se ficasse e lutasse, não descansaria nem por um segundo, durante o que seria sentido como uma eternidade. E certamente acabaria partindo-se assim mesmo. Preferiu partir de uma vez, a partir aos pedaços.

Partiu e vagou, no limbo e sem direção. Sem saber o quanto haveria de vagar, não o preocupava aonde chegar. Vagou e cansou. Cansou e parou. Parou e encontrou um lugar onde podia ficar. Mesmo sem saber por quê ficar. Ficou, descansou. E até esqueceu. Sim, por um tempo ele – ao menos acreditou que – esqueceu. Mas, de fato, havia partido. E, uma vez tendo partido, não havia como esquecer. Não totalmente.

Totalmente descansado, acordou. Acordou e percebeu que por mais que acreditasse estar longe, em alguns momentos, por segundos que fosse, ainda estava lá. Onde tudo começou. E então, percebeu o quanto havia realmente partido. Partido a ponto de nunca partir. Partido a ponto de não encontrar mais lugar, de nem ao menos saber se havia como não mais partir. Mas sentiu que havia de – poderia... será? – tentar.

Antes de pensar em partir, já havia partido; quando pensou em voltar, não sabia mais se havia voltado. Só sabia que já não havia mais partido, não havia mais escolha. Mas não sabia se ganhara ou fora derrotado. Ou se um dia ganharia. Ou mesmo se havia como – ou mesmo o quê – ganhar. Sentia apenas que havia voltado, mesmo sem saber de onde, nem por quanto tempo, e muito menos porquê.

Apenas sabia que, afinal, nunca havia partido.

Conversando com...

- Seja bem-vindo.

- Olá... nos encontramos novamente.

- Sim... é um modo de ver as coisas...

- É, tem razão... de outro modo, seguimos sempre o mesmo caminho. Portanto, não há reencontro.

- Exatamente. Pelo visto, você aprendeu muito desde nossa última conversa.

- Sim... é um modo de ver as coisas...

- Lógico, lógico... E então... por que voltaste?

- Não sei ao certo... na verdade, ando muito confuso – o que, convenhamos, não é novidade nenhuma...

- De fato. A vida é mesmo confusa, já que nós a fazemos assim.

- Então... num momento parece que tudo segue um caminho certo, tudo se encaixa, planos estão a ponto de serem feitos... e de repente, tudo vira do avesso, nada faz sentido, nada tem lógica; nada de planos, porque todos os que foram pensados já não têm mais razão de ser...

- Isso não é verdade... nem todos os teus planos ruíram, e você sabe disso. só aqueles que realmente não tinham razão de ser.

- É, isso agora está ficando claro... mas, mesmo assim, os planos que ainda fazem sentido não parecem possíveis.

- Hum... se fazem sentido, então são possíveis.

- Será? porque não consigo entender como eles acontecerão. Quer dizer, eu sei que passo dar pra que eles venham a acontecer, mas nem todo passo é possível, só com o meu caminhar.

- Entendo o teu ponto de vista. O problema é que nem tudo o que faz sentido pra você faz sentido para outras pessoas. Ao menos não na mesma medida. Lembra do que conversamos em nossos encontros anteriores, não?

- É, lembro, claro. Mas é um caminho difícil esse... muito difícil, e às vezes muito cansativo também.

- “E quem disse que seria fácil?” Você mesmo diz isso o tempo todo, não?

- Sim, digo sempre, mentalmente ou em voz alta, pra não esquecer que por mais que tudo pareça estar tranquilo, sempre haverão obstáculos, e preciso estar preparado para quando surgirem.

- “Na paz, prepara-te para a guerra¹”...

- Ok, ok!! Eu conheço minhas citações – e suas fontes – muito bem, e você sabe disso... Não estou reclamando, você sabe... só desabafando um pouco, já que não tenho com quem mais fazer isso.

- Eu sei... é complicado viver assim. Mas você não precisa, realmente. Mas precisa perder o medo de se abrir, de se expôr.

- Isso é complicado demais. Não o me abrir, ou me expôr, mas o que isso acarreta. Mesmo que alguém consiga sentir tanto quanto eu, não consegue acreditar naquilo que sente, e portanto também não consegue entender como eu me sinto.

- As pessoas costumam confundir aquilo que é sentido com aquilo que faz sentido... nem tudo que é sentido faz, realmente, sentido. Aliás, se fizer sentido, talvez não seja realmente sentido. Porque o sentido quem dá é a razão. Mas a razão, por si própria, não sente. E o sentimento, sendo algo exterior à razão, precisa ser por ela entendido, para poder ter algum sentido.

- É... consigo perceber isso com mais clareza hoje em dia, mas ainda assim, é difícil manter o foco no que se sente, e não analisar tudo, ou não tentar interferir... é realmente complicado.

- Se não pudesses dar conta disso, não estarias aqui, conversando comigo.

- E será que posso mesmo? Porque hoje em dia já não sei mais...

- Duvidar também faz parte do processo... querer sumir, mandar tudo pro alto, ou simplesmente parar de sentir... é importante se auto-questionar, se auto-avaliar constantemente, porque isso te impede de cometer o pior dos erros...

- ... acreditar que não há mais nada a aprender, a melhorar, a crescer, a corrigir.

- Perfeitamente. E te ajuda a saber quando a missão está completa, e é hora de partir.

- Partir... não me lembra disso, por favor... Já foram muitas partidas sem despedida, e retornos sem boas-vindas... e todas sem nem sair do lugar. E agora mais uma possibilidade de partida, e a jornada mal começou.

- Se é isso que te preocupa, acho que tens a resposta... como sempre.

- É... ter a resposta é minha sina... saber entendê-la – ou senti-la, dependendo do caso – é minha maldição. Ou bendição, sei lá...

- Nem uma coisa nem outra. As pessoas costumam atribuir a suas habilidades uma conotação boa ou ruim, e também creditar a fatores externos tudo aquilo que vêm delas, ou que vêm a elas. Isso porque preferem não aceitar o fato de que tudo aquilo que há pode ser equilibrado, e que os fatores que giram em torno de suas habilidades oscilam dependendo de como são afetados por elas.

- Neutralidade é algo visto como mito.

- É um conceito mítico, realmente. Equilíbrio e neutralidade não são a mesma coisa. Vamos deixar a neutralidade para outra conversa, porque o que nos interessa aqui é o equilíbrio. Equilibrar as coisas não significa ser bom pra afastar o que é ruim, ou vice-versa. Não é combater um lado através do outro.

- Sim, isso eu entendo. Aceitar que existe dualidade, e que o equilíbrio só é possível através da complementação de ambas as forças, é o caminho mais difícil.

- E se pra você é difícil, imagine para aqueles que estão começando a se dar conta disso.

- É, eu sei. O que eu posso fazer? O que eu posso dizer? Como posso ajudar, se não sei nem se consigo ajudar a mim mesmo...

- Sei que isso não é um pergunta pra mim. Você sabe as respostas, mesmo não a sabendo. A confiança é cega...

- ...O caminho também. Você sempre diz isso. Poder ver o caminho só depois de percorrido também é desgastante. Viver todos os tempos, todos os momentos, todas as vidas, tudo ao mesmo tempo, e não descuidar do aqui e agora, não desviar do rumo... mas nada desgasta mais do que me sentir sozinho.

- Mas sabes que não estás sozinho.

- Sim, eu sei. Mas ainda assim, me sinto sozinho. Mesmo quando não estou.

- Entendo. E essa pessoa, de quem não queres perguntar, também acredita que está sozinha, não?

- Não sei.

- Tudo tem sua razão de ser. Aquilo que pressentes também. Mesmo que, o que pressentes, não seja visto ou entendido. Mesmo que seja tudo um engano. Mesmo enganos têm sua razão de ser.

- Sei, te referes ao que passou. Sim, eu consigo ver a razão de tudo ter acontecido como aconteceu. Mas isso não diminui a minha apreensão com relação ao que pode acontecer – ou deixar de acontecer - no futuro.

- Ótimo. Apreensão é o que te deixa alerta, e que te permite não deixar passar as lições que precisas aprender, tanto com relação ao teu próprio caminho quanto ao caminho daqueles a quem proteges.

- Não acho tão ótimo me sentir assim... mas enfim... creio que, por hora, essa conversa fica por aqui.

- Sim, perfeitamente. Tudo a seu tempo...

- Obrigado por me ouvir.

- Quando quiser, sempre que precisar...


¹ TZU, Sun. A Arte da Guerra. Adapt. James Clavell. Trad. José Sanz. 24 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.