Cosmogonia

   No início, tudo era escuro, vazio, sem graça. Meio lugar comum, sabe? Acordar, passar pelas trivialidades do dia, e depois dormir de novo. Nada de muito interessante. Então, um dia, meio sem querer, eles viram um ao outro. À distância, sem nem mesmo reparar direito. Ambos já existiam antes desse dia, mas simplesmente ignoravam a existência um do outro. Freqüentavam um mesmo espaço, porém distantes um do outro, fisicamente, e por isso demoraram tanto tempo para se conhecerem.

   Durante o dia conversavam, brincavam, riam; ou então, mesmo quando não havia assunto, compartilhavam calados um da presença do outro. E cada vez mais se sentiam ligados, unidos por algo muito maior do que simplesmente uma amizade casual. E perceberam então que, independente do que acontecesse a partir de então, um estaria sempre ali para o outro, havendo ou não necessidade. Ao final da tarde, despediam-se certos do reencontro no dia seguinte; ainda assim, mesmo sem perceber, algumas vezes ele virava a noite, ansiosamente, esperando o momento de reencontrá-la.

   Ele não era um cara solitário, muito pelo contrário. Era até bem apessoado, e tinha uma grande capacidade de inspirar outras pessoas. Admirado por muitos, desprezado por outros tantos, sempre era alvo de olhares aonde quer que aparecesse, e vivia a aconselhar pessoas solitárias ou com problemas a resolver. Ou, calado, tornava-se confidente dessas pessoas, quando buscavam apenas um ombro pra chorar e um desabafo seguro. Também ajudava, aos que recorriam a ele, a conquistarem ou reconciliarem-se com seus pares, e resolverem seus problemas afetivos. Sua criatividade e presença já havia sido motivo de textos, poemas, músicas e diversas outras expressões artísticas. Aliás, arte era o que mais lhe motivava, aquilo do qual ele sentia, mesmo que tivesse percebido somente depois de muito tempo, que ele realmente fazia parte, fossem simples palavras ou complexas imagens, de simples frases a elaboradas metáforas.

   Ela era forte, radiante, e linda, muito linda. Mesmo que ela não conseguisse ver muito disso em si própria, com certeza via à sua volta. Onde quer que estivesse, existia vida, alegria, cores e mais cores. Seu calor e alegria estava presente por onde passasse, e também era fonte de inspiração de muitos. Sua companhia era certa em praias e viagens de férias no verão, ou mesmo algum fim de semana que propiciasse um bom churrasco ao ar livre.

   O que causava admiração de uns, incomodava outros, que preferiam viver à sua sombra, ou diminuir sua capacidade e brilho. Alguns dias mais nebulosos a deixavam meio apagada. Mas mesmo quando algo ou alguém tentava barrar seu caminho, nunca deixava de acreditar que poderia vencer. E quando desanimava, encontrava nele apoio certo, uma vez que, mesmo nunca a tendo visto de perto ou estado junto a ela, conseguia ver como ninguém toda a sua beleza e força.

   Ele também tinha sua luz, mas não o tempo todo. Ficava meio pra baixo algumas vezes, de uma hora pra outra. Mas sabia que eram só fases, e que logo seu ânimo e inspiração voltariam. E ela sempre o ajudava – e muito – a confiar nisso e se reerguer, a maioria das vezes sem precisar dizer nada; só o fato de saber que ela estava lá já o ajudava a crescer novamente.

   Ambos têm histórias muito parecidas, apesar de não serem irmãos. Na verdade não somente parecidas, suas vidas parecem ser meio opostas. Não contrárias, no entanto... são complementares. Ela gosta mais do calor, ele do frio, mas ambos preferem a meia-estação; e muitos outros aspectos de suas vidas se parecem e complementam, e isso fez com que se sentissem cada vez mais próximos um do outro, apesar de fisicamente estarem sempre a uma mesma distância determinada. Às vezes ela viaja, um pouco mais pra longe dele, ou um pouquinho mais para perto, mas ainda assim permanece sempre distante demais para que possam encontrar-se pessoalmente, trocar um abraço ou um beijo. Já ele não, permanece sempre no mesmo lugar, apesar de nunca estar realmente parado. Está sempre andando, mas pelos mesmos caminhos rotineiros aos quais está preso, por responsabilidades das quais não pode se abster. Do contrário, como já disse inúmeras vezes, já teria há muito tempo ido ao encontro dela.

   Ele, apesar de ter alguns amigos, que procuram nele conselhos, apoio ou simplesmente companhia distante, não costumava sair muito, é meio solitário em suas caminhadas, mesmo sabendo que tem amigos próximos. Poucas pessoas chegaram realmente perto dele o suficiente para tocá-lo, mas nenhuma permaneceu por muito tempo, e isso deixou algumas marcas, que o ensinaram a aprender com essas experiências, e sobreviver a elas, sem nunca esquecer que aconteceram, ou a participação que teve nelas. Ela, no entanto, tem alguns amigos ao seu redor, fiéis e companheiros, que ele vê à distância também, e com os quais nunca conversou diretamente. Sabe deles somente através dela, quando ela mostra suas imagens ou menciona seus nomes.

   Ele sempre soube que alguém tão iluminada e bela não poderia existir sozinha, sem ser admirada por todos ao seu redor. Sente um pouco de ciúmes, claro, pois outros têm a proximidade física que ele gostaria de ter. Mas ainda assim sabe que, contanto que ela esteja feliz, ele também estará, mesmo não se sentindo totalmente completo, pois percebeu ao longo desse tempo de relacionamento que muito do que ele é reflete muito do que ela irradia, e que sendo assim, uma parte do que ele é nunca esteve realmente consigo, mora no coração dela.

   O que eles têm e compartilham é muito mais do que ele esperava um dia conhecer, e isso nada ou ninguém poderá diminuir ou roubar deles. Porque ela existe, existe vida ao seu redor; porque ele existe, nada poderá fazer com que ela deixe de brilhar. E enquanto ela brilhar, nada poderá tirar-lhe a força e a inspiração. E, ao redor deles, o mundo gira.

   Seus nomes? Ela: o Sol - Ele: a Lua.

 
   Åndarilho §amurai