Minha vida, minha Bíblia

Minha vida é um livro aberto, escrito em um idioma que só eu entendo. Assim como a Bíblia:
- todos podem ter acesso a ela;
- muitos gostam de falar dela;
- poucos são os que realmente a leram;
- raros os que leram e conseguiram realmente entender algo;
- e, certamente, ninguém ainda conseguiu compreender a totalidade dos seus ensinamentos.

Minha vida também é composta de vários livros, cada um escrito pelo ponto de vista de outras pessoas, e sempre depois da minha morte. Muitas vidas, muitas mortes, muitos livros. E cada pessoa que ouve ou lê o que se escreve em cada um dos livros, conta ou escreve a história novamente, segundo a sua opinião, seu ponto de vista.

Minha vida é escrita originalmente em um idioma há muito esquecido pela civilização, perdido por tantos milênios que eu mesmo quase não consigo mais decifrar... Mas ela também é traduzida em vários idiomas, por várias pessoas, sem, contudo, conseguir preservar a totalidade de sentido que só o idioma original pode transmitir. O que não significa que seja impossível apreender a mensagem a partir de cada tradução. A mensagem está lá, mas somente para quem tiver a mente aberta o suficiente para alcançá-la.

Complicado? De forma alguma... Não é porque o idioma original se perdeu no tempo que ele não pode ser recuperado pela memória... Como encontrar? Mais simples ainda: não procurando.

Åndarilho §amurai

Morpheus

Chamam-me costumeiramente de sonhador, porque ando pela rua mergulhado em pensamentos. Ligo o piloto automático que me guia sempre pelo mesmo caminho, de casa até a faculdade, e simplesmente me desligo do mundo à minha volta. Chego a perder a noção do tempo, imaginando-me em diversas situações, problemas que tenho para resolver, pessoas com quem tenho que falar, coisas rotineiras a fazer. Porém me dou conta que, estando tão desconectado da realidade ao meu redor, quase seria possível afirmar que realmente não faço parte dela, estou literalmente em outro lugar, falando com outras pessoas, fazendo outras coisas, ao invés de estar lá, caminhando pela rua. O que faria de mim não um sonhador, mas um viajante de muitas realidades, todas elas concretas e possíveis.

Se a forma de empreendermos a realidade é através dos nossos sentidos, e esses são percebidos através de impulsos, estímulos neurais no interior de nosso cérebro, então a realidade, o momento em que estamos, o lugar por onde andamos, não é aquele por onde nosso físico percorre, mas aquele por onde nossa mente viaja, pois é nela que se encontra a noção da realidade. Sendo assim, o sonho nada mais seria do que uma viagem, no tempo e no espaço, onde percorremos lugares distantes, passamos horas interagindo com outras pessoas e lugares, no tempo “real” de apenas alguns minutos.

Isto pode parecer ilógico, talvez até provocador demais para aqueles que não se permitem sonhar, e acreditam que existe uma única realidade possível, e um único tempo corrente. Pois bem, mesmo esses céticos, ao menos a maioria deles admitem essa possibilidade, ao acreditarem na figura onipotente e onipresente de Deus. Ora, quem seria Deus senão a representação de um sonhador? Onipotentes, no momento em que realiza tudo aquilo que quiser realizar, e ao mesmo tempo se quiser, usando somente a força de um pensamento; onipresentes, existindo em várias realidades, vários lugares, várias épocas ao mesmo tempo, sem nem ao menos precisar sair do lugar. E não dizem, e mais ainda, acreditam, que Deus é tudo o que existe? Bom, já dizia o filósofo na antiguidade: penso, logo existo. Mas enquanto ser humano, limitado. No entanto, no momento em que sonho, existo de forma onipotente, onipresente, então existo não como ser humano, mas como Deus.

Isto poderia soar como uma intenção um tanto quanto presunçosa de me dizer melhor do que as pessoas ao meu redor, no entanto a própria religião pode ser usada como resposta, quando diz “ama ao teu próximo como a ti mesmo”. Ou seja, tenho consciência de que assim como sou um sonhador, também todas as pessoas o são, mesmo aquelas mais céticas se entregam inconscientemente ao sonho quando dormem, e que ao acordarem recusam-se a lembrar disso.

(texto escrito no semestre passado, para a cadeira de Comunicação em Língua Portuguesa III da faculdade)

Åndarilho §amurai