Um Sonho de Liberdade*

Nunca fui um papagaio muito emotivo, ou de muitas ambições, até alguns meses atrás, antes de minha morte. Era conhecido por ter as mais belas penas do viveiro onde nasci, e tinha muito orgulho disso. Lembro que o ancião do viveiro sempre dizia que muito em breve eu sairia dali, e iria pra algum lugar com muito espaço, comida farta, um poleiro novinho e viveria feliz. E, finalmente chegou o dia: uma mulher veio, olhou o viveiro inteiro, depois pra mim e disse: “Aquele ali”. E foi então que iniciei o que pensava ser uma jornada rumo a uma vida feliz em liberdade, sem imaginar que estava embarcando rumo ao meu destino final.

Lembro da primeira vez que vi minha dona: olhei pelo buraco da caixa de papelão e vi uma menina magra, aparentemente meiga, toda arrumadinha. Ela abriu a tampa da caixa e vi seu olhar, por trás daqueles óculos, fundo de garrafa, perder o brilho rapidamente. “Isto é um papagaio!" – gritou ela – “Eu quero um cachorro!”. “Bruninha, eu já te falei que cachorro eu não compro” – respondeu a mulher que me trouxera do viveiro, dirigindo-se à porta. “Além de ser alérgica a pêlos, nós moramos no décimo andar. Estou saindo pro trabalho, até a noite!”. Em protesto, a menina arrancou-me uma pena da cauda. Bateu o pé, choramingou, e subiu para o seu quarto, me sufocando em seus braços. Já havia perdido a esperança de um futuro feliz com sombra e água fresca, mas o pesadelo mesmo começou quando ela me atirou em uma gaiola apertada e suja, e gritou: “Você é um cachorro, e vai se chamar Rex!”.

Daquele dia em diante, iniciou-se uma torturante rotina de passeios diurnos guiado por uma coleira, uma tigela de ração e outra de água por dia, e muitas, muitas penas arrancadas, na esperança de que um dia, talvez nascesse algum pêlo em meu corpo. Mas o mais humilhante de tudo, foi a tentativa de adestramento. Andar, parar, deitar, rolar, fingir de morto, como entender aquilo tudo? Ao ouvir cada ordem, cada comando, a única coisa que eu conseguia, ou mesmo sabia fazer, era repeti-las, o que fazia com que ela tivesse grandes acessos de raiva. E, então, mais penas arrancadas.

Acabei aprendendo a gostar da ração, já nem sentia mais as poucas penas restantes serem arrancadas, e os passeios diários eram a única coisa que realmente que ainda me causava algum sentimento, davam-me esperanças de um dia conseguir me desvencilhar daquilo tudo e conquistar a tão sonhada liberdade. A chance finalmente surgiu quando, um dia, ela colocou a gaiola em cima da mesa, para trocar a água e colocar minha coleira pra passear, como de costume. Demorei um bom tempo pra entender aquela sensação que tomou conta de mim, alguma coisa estava diferente, mas não conseguia perceber o quê, até que me dei conta que o barulho dos carros estava mais alto do que de costume. A janela aberta, bem ao lado da mesa! Pela primeira vez pude ver nitidamente, sem aquele vidro escuro fechado, a luz do sol invadindo a gaiola, as árvores balançando ao vento, o som de pessoas e de trânsito lá embaixo. Era minha chance, não podia perdê-la de jeito nenhum! Respirei fundo, e esperei.

Foi então que ela, como esperado, abriu a portinhola para colocar a tigelinha de água, e me pegar pra mais um passeio matinal. Súbito, dei-lhe uma bicada na mão, que a fez pular pra trás e gritar. Saí da gaiola e me pus a correr em direção à janela, ganhando mais e mais velocidade, até saltar, asas abertas, finalmente livre, sentindo o vento nas... Penas!!

O ímpeto de me libertar daquela prisão não me permitiu perceber que já havia me acostumado tanto às penas arrancadas, que esqueci completamente de uma das funções básicas delas: me permitir voar. Enfim, a liberdade veio, não através do grande céu aberto, mas de outra prisão, muito breve, entre o asfalto e o pneu de um veículo qualquer. Livre da gaiola, e do corpo castigado, pude finalmente encontrar a paz.

ŧ

(*) Texto escrito em conjunto com os colegas Ariane Rauber, Mauricio Thomsem e Vivian Dal’Alba, trabalho da cadeira de Português III da facul, a partir de personagens criados por Wesley Kuhn, Mayara Bortolotto e Lucas Ladwig:

"Uma criança que foi mimada demasiadamente pelos pais. Egoísta, chorona e rica, não poupa esforços para conseguir o que deseja. É muito magra, e usa óculos “fundo de garrafão”. É muito chata, e por isso não tem amigos, só um papagaio. Não tem irmãos, seu pai morreu e sua mãe passa muito tempo fora de casa e, para compensar isso, enche a criança de presentes. Nome da criança: Bruna"

2 comentários:

Anônimo disse...

Isso é meio Brás Cubas, não? Gostei. Muito bom.
Era trabalho de faculdade? (se foi, quanto tirou de nota? rsrs)
Gostei. Gostei mesmo. Parabéns.
Bjaum!

. disse...

Na verdade, a idéia do texto, de escrever o texto do ponto de vista do papagaio depois de morto foi sim baseado em Brás Cubas. O título provisório do rascunho era "Memórias Póstumas de Rex", que depois foi modificado para o atual ;c)

Foi um trabalho muito legal de desenvolver, por isso resolvi postar aqui e compartilhar com os amigos.